Por volta do primeiro terço do século XX, o filósofo alemão Martin Heidegger trabalhava na cidade de Marburg, atual Alemanha, naquela que viria a se tornar sua principal obra, Ser e Tempo. Em suas mais de 600 páginas, busca responder a uma simples pergunta:
O que é o Ser?
Heidegger percebe que para alcançar seu objetivo, precisaria compreender no que consiste a experiência própria de ser humano, tão diferente de todo o resto que está no mundo. A esse ser o autor denominou Dasein, o único capaz de ir além de si, questionar sua existência. Essa distinção, essa liberdade de pensar a si próprio, tem seu preço. Ciente de sua finitude, o ser humano se angustia, muitas vezes buscando fugir desse sentimento em uma vida inautêntica. No entanto, é impossível fugir completamente da mortalidade.
É a partir desse contexto que o filme animado Kimi no Suizou wo Tabetai (Eu Quero Comer seu Pâncreas em tradução livre) desenvolve a história de Sakura Yamauchi, uma estudante do ensino médio que possui por volta de um ano de vida em razão de uma doença que ataca seu pâncreas. Mesmo diante de tão terrível futuro, Sakura continua vivendo sua vida cotidiana sem muitas mudanças, escondendo sua condição de todos fora de sua família.
Um dia, porém, seu colega de classe, o isolado Haruki Shiga, descobre por acaso o diário que a garota mantém narrando sua vida pós diagnóstico. Com uma política pessoal de não se envolver com outras pessoas, apenas julgando-as de longe, o garoto não se impressiona, mas acaba sendo puxado por Sakura para sua vida.
KimiSui, como ficou abreviado no Japão, tem como principal qualidade não apenas apresentar mais um drama genérico sobre o relacionamento de um garoto com uma garota que está prestes a morrer e que precisa aproveitar a vida que resta – usando-se disso como artifício para garantir o crescimento pessoal da parte masculina -, mas também equilibrar dilemas existenciais com mais profundidade que a maioria desses filmes costuma aceitar.
Quando nos deparamos com a proximidade da morte, especialmente da nossa, é normal que nos desesperemos. Sendo um dos eixos mais estruturais da experiência humana, buscamos elementos que nos afastem do fim, mesmo que este seja sempre inevitável. Sakura não se aliena de sua condição, mas a ideia de ser reduzida àquela que vai morrer por seus amigos é ainda pior que o sofrimento que guarda sozinha.
Se no início ela soa infantil, descompromissada e até inconsequente, vamos aos poucos percebendo que a garota está muito mais envolvida com seus sentimentos do que aparenta. Ao mesmo tempo que procura proteger aqueles que gosta da tristeza de ver alguém próximo e tão jovem morrendo, há um quê de egoísmo natural por querer apenas viver normalmente, como todos e com todos.
O encontro com seu colega de classe, exatamente seu oposto, possibilita a ela uma vazão ao próprio desespero solitário. Com ele é possível falar abertamente do que a espera sem que isso transforme a relação de ambos em um velório antecipado. Do lado dele um desespero ainda maior. Sua escolha pelo não envolvimento com outras pessoas tenta garantir seu não sofrimento. Acredita, ingenuamente, que ao não se envolver poderá se resguardar de julgamentos e decepções.
Ainda que tudo isso seja apresentado através de diálogos muito artificiais, com cenas que muitas vezes parecem não se encaixar num bom fluxo, o filme consegue nos envolver por falar abertamente daquilo que todos nós, racionalmente ou não, precisamos lidar. Mais do que isso, com sua leitura existencial otimista, nos apresenta uma fuga da angústia da morte: ser com os outros. Ela não nos tira do sofrimento, como o final do filme claramente demonstra, mas dá um significado a essa agonia pelo qual vale a pena viver.
Há, no entanto, um adendo importante de ser feito. Ao mesmo tempo que evoca a relação humana como única chave para lidar com o sofrimento inerente da nossa existência, KimiSui bizarramente tangencia para uma valorização da autossuficiência, quase como se estivesse se desculpando a um tipo específico de espectador. Diferente do que Sakura discursa ao final, não há charme no protagonista, sua relevância está justamente na falha.
Eu Quero Comer seu Pâncreas está longe de ser uma obra prima. Tropeça na própria ambição, cai no velho estereótipo de sacrificar uma mulher para ajudar um personagem masculino a crescer, se contradiz mas ainda assim termina como uma experiência positiva ao ir além de uma bela arte, chamando-nos para questionar quem e como somos. Não há destino, estaremos sempre precisando escolher, ainda que sujeitos aos inevitáveis da vida.
Noss, ler isso foi tão bom quanto assistir ao filme. Tão bonito quanto. Embora não concorde com algumas partes, acho que ele foi perfeito ao expressar tudo o que filme passou. Muito bom.
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